but Heaven is where Hell is..

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A ASSASSINA





A Raquel veio hoje de visita.
Trazia o cabelo em tranças doiradas.
Perguntei-lhe: queres chá, um sumo de laranja ou a água
que consigo tudo leva e arrasta?
Sentou-se no sofá a olhar as fotografias espalhadas pela sala.
Disse: antes tiravas-me fotografias, enchias-me de beijos,
tocavas-me com as mãos, os dedos e interditas palavras.

Fiquei sem saber o que dizer.
O passado é um lugar afastado e irrequieto
ao qual não é possível regressar ileso.
Meses e dias sucessivos esforçando-se por fazer sentido e,
subitamente, a ruptura, a quebra, a catástrofe
que nos leva de uma vida para outra.

A Raquel do mais frágil colo,
das mãos de dedos finos e nervosos,
dos seios brancos como neve,
pergunta-me se pode tirar as sandálias de couro pintado de vermelho,
e justifica-se: descalça sinto-me mais livre
de encontrar o que procuro, embora lhe desconheça o nome.

Queres uma ou duas colheres de açucar? pergunto,
e não se queixa por eu ter esquecido os pequenos hábitos
que construíram outras horas.
É preciso prosseguir afastando o que se intromete,
se isso for possível. Mas se a sorte nos trouxer desgraças
rezemos e aceitemos, há sempre em nós uma falta inapagável.

A Raquel de olhos belos e corpo feito de desejo,
diz-me que o amor lhe tem sido traiçoeiro,
prometendo o que não pode.
Que deixou o namorado ou o namorado a deixou a ela,
de qualquer jeito não era feliz, nem antes nem depois
desde que os deuses, ou o destino a castigaram.

Procuro mostrar-lhe que não é assim,
mas sem convicção, inutilmente.
Somos seres expostos ao que os dias trazem
e não há modo de saber o que se encontra por detrás da porta fechada.

Conheces o I Ching? pergunta ela.
É um livro chinês que responde às nossas perguntas,
se elas forem bem postas.
Não saio de casa sem o consultar. Uma pessoa tem de acreditar em algo que
traga um sentido a este existir tão escasso.
Eu concordo e prometo-lhe encontrar esse livro mágico,
embora saiba que o não vou procurar em nenhum lado.
Não acredito em profecias, visões, adivinhas ou oráculos.
Acredito que dois mais dois são quatro
que a luz se propaga à estonteante velocidade
perto dos trezentos mil quilómetros por segundo,
que em 1815 Napoleão perdeu-se na batalha de Waterloo,
e uma série indefinida de minúsculas verdades que não salvam.

A Raquel morde os lábios perfeitamente desenhados e pergunta:
não tens por acaso alguma flor de marijuana,
ou uma bela história que me traga o doce sono?
Com todo o cuidado faço um cigarro e passo-lho.
Ela fuma devagar. O fumo penetra-a pela boca de onde depois se escapa
fazendo rolos para o alto.
Não queres beijar-me os lábios quentes?
pergunta dentro de um silêncio.
Aproximo-me por detrás
e retiro-lhe a camisa branca.
O fascínio erótico aprisiona-me por completo.
As minhas mãos, os meus olhos, os meus sentidos todos
deixam de ser meus para serem dela.

Quando estou tão perto do seu pescoço que nada vejo,
sou assaltado por um terror antigo, um cruel abandono.

O seu corpo iluminado impede qualquer tipo de vingança.
Deve ser tremendo ser desejada por quem quer que seja,
um paciente jogo de uma qualquer luxúria,
e depois descuidada quando já nada serve.

Volto a vestir-lhe a camisa impecavelmente branca
e sento-me no sofá à sua frente.
O intermitente barulho dos carros que passam na rua
circula pelo espaço entre coisas imóveis.
Olhamo-nos como se nunca nos tivéssemos visto,
e depois sorrimos lembrando desencontros,
lutas, desgastantes ciúmes.

Não devias ter fugido com o meu melhor amigo, digo,
sem qualquer violência ou incriminação na voz.
E a assassina explica: de qualquer modo teria de deixar-te,
embora o modo pudesse ter sido outro e menos bruto.
Assim os deuses o devem ter querido,
pois, se queres que me confesse,
sinto-me culpada e inocente ao mesmo tempo.
Por vezes é difícil distinguir a sorte da maldade.

Chega a hora da despedida.
Abraçamo-nos estreitamente como irmãos,
prometendo voltar em breve a encontrar-nos.
Como se ainda alguma coisa esperasse pro nós,
tendo ficado por dizer ou por fazer, quando não há nada.

Mal a porta fechou, encostei-me a ela,
e num rodopio chegaram-me incontroláveis memórias.
O lugar onde primeiro a vi, a noite do primeiro beijo,
a tarde da primeira zanga, a impossibilidade de tudo.

Amor, vem ou parte, mas não me deixes ficar nesta aflição,
nuvem à deriva, pedaço de nada.

Pedro Paixão

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